Dorrit Harazim ganha o Reconhecimento a Excelência do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo

Dorrit Harazim ganha o Reconhecimento a Excelência do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo

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A repórter e editora brasileira, com 50 anos de carreira e referência do jornalismo em português, vai receber o Prêmio no dia 30 de Setembro na cidade de Medellín na Colômbia, durante o festival do Prêmio GGM.

As guerras do Vietnã e Camboja, o golpe contra o governo de Salvador Allende no Chile, os atentados contra as Torres Gêmeas em Nueva York, a primeira Guerra do Petróleo nos Emirados Árabes, quatro eleições presidenciais nos Estados Unidos e oito olimpíadas. Estes são alguns dos fatos históricos, dos quais a jornalista brasileira Dorrit Harazim foi testemunha e relatora durante os seus 50 anos de carreira e pelos quais este ano vai receber o Reconhecimento a Excelência do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo.

A forma com a qual Harazim narrou estes fatos, e a sua capacidade para “encontrar ângulos e aspectos que outros jornalistas deixam passar desapercebidos, assim como a maneira que encontra para transportar o leitor até minuciosos e interessantes detalhes”, são os aspectos destacados pelo Conselho Reitor do Prêmio GGM, integrado por Germán Rey, Mónica González, Jean-François Fogel, Jon Lee Anderson, Héctor Feliciano, Rosental Alves, Martín Caparrós, Sergio Ramírez, María Teresa Ronderos, Héctor Abad Faciolince e Joaquín Estefanía, que outorgaram este Prêmio de forma unânime.

Dorrit Harazim se destaca, além disso, pelo seu trabalho como editora nos meios de grande importância no Brasil como a revista Veja e a revista Piauí, nas quais Harazim fez parte da equipe fundadora. Também alcançou uma destacada trajetória como colunista do jornal O Globo. O Conselho Reitor do Prêmio GGM reconhece também sua capacidade narrativa, fazendo um uso magistral do idioma, pois aqueles que leem as suas publicações, afirmam que Dorrit Harazim escreve “o melhor português do Brasil”, tal e como foi escrito na Ata de Julgamento, que foi relatada pelo Conselho Reitor do Prêmio GGM.

O Reconhecimento a Excelência é concedido anualmente para um jornalista de reconhecida independência, integridade e compromisso com os ideais de serviço público do jornalismo, que merece ser destacado e posto como exemplo pelo conjunto da sua trajetória e aporte excepcional para a procura da verdade e do avanço do jornalismo. Gianina Segnini (Costa Rica), Javier Darío Restrepo (Colômbia) e Marcela Turati (México) são os Jornalistas que obtiveram tal reconhecimento nas duas edições anteriores do Prêmio GGM nos anos de 2013 e 2014.

O anúncio foi feito nesta manhã durante a coletiva de imprensa na cidade de São Paulo, no Centro Cultural Itaú, onde a vencedora respondeu as perguntas da imprensa na companhia do Diretor Geral da FNPI, Jaime Abello Banfi, e do Diretor Executivo, Ricardo Corredor Cure.

Dorrit Harazim no Festival do Prêmio GGM na cidade de Medellín

Dorrit Harazim vai receber o Prêmio no dia 30 de Setembro na cidade de Medellín, cerimônia na qual vão ser conhecidos também o nome dos vencedores das quatro categorias do concurso que compõe o Prêmio GGM: Texto, Imagem, Cobertura e Inovação, que neste ano, receberam um total de 1.645 trabalhos inscritos, onde os quais neste momento se encontram na segunda etapa de julgamento.

Em torno à entrega do Prêmio GGM também será realizado o Festival do Prêmio GGM, entre os dias 29 de setembro até o dia 1º outubro. Vão ser três dias de atividades gratuitas e abertas ao público, que será realizada no centro de convenções Plaza Mayor, nas quais os assistentes vão poder ver e escutar as referências do jornalismo atual, cujo seus nomes serão conhecidos nas próximas semanas. Harazim, quem fará parte da programação deste ano, participou também na edição de 2014 do festival.

Sobre o Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo

Este prêmio da FNPI é possível graças à parceria que há entre a Prefeitura Municipal da cidade de Medellín na Colômbia, pelo Grupo Bancolombia, Grupo SURA e suas filiais na América Latina. Conta também com o apoio permanente que a FNPI recebe do seu aliado institucional, a Organização Ardila Lülle (OAL).

 

Contatos para a imprensa

 

Teresita Goyeneche

Coordenadora do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo

tgoyeneche@fnpi.org

+57 3008052881

 

Jessica Arrieta

jarrieta@fnpi.org

+57 3166408792

Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI)

 

            Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo

     Ata e declaração do Conselho Reitor

           Decisão da categoria Excelência, 3ª. Edição, 2015

 

Nos dias 16 e 17 de março de 2015 estiveram reunidos na cidade de Cartagena de Índias na Colômbia, os membros do Conselho Reitor do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo para deliberar e adjudicar a Categoria de Excelência que será entregue na cidade de Medellín na Colômbia na quarta-feira dia 30 de setembro de 2015. Participaram pessoalmente da reunião: Germán Rey, Mónica González, Héctor Feliciano, Héctor Abad Faciolince, Martín Caparrós, Carlos Fernando Chamorro, Joaquín Estefanía e Sergio Ramírez. Participaram mediante comunicação de voz e texto on-line: Jean-François Fogel, María Teresa Ronderos, Jon Lee Anderson e Rosental Alves.

As razões que motivaram o Conselho Reitor a outorgar este prêmio de forma unânime são expressas no seguinte esboço biográfico, que faz parte integral da presente Ata e justificam amplamente a eleição como sendo vencedora a jornalista:

Dorrit Harazim

Repórter e editora, Brasil

Dorrit Harazim é brasileira, nascida na Croácia, tem 72 anos e em 2016 completa 50 anos de uma brilhante e inspiradora carreira jornalística. Harazim iniciou a sua carreira como jornalista em Paris, no ano de 1966, quando entrou trabalhar como investigadora e pesquisadora na revista francesa, L’express. No ano de 1968, Mino Carta a convidou para que participasse na criação da revista semanal de notícias, a revista Veja, que nas décadas posteriores se transformou em uma referência do jornalismo narrativo brasileiro e continental, com uma circulação de mais de um milhão de exemplares. No transcorrer de seus anos trabalhando na Veja, Dorrit foi repórter, editora e chefe de redação. Apesar do seu local de nascimento, e o fato de que a sua primeira experiência como jornalista tenha sido em francês, muitas pessoas que tem o prazer de ler a revista no seu idioma original, não duvidam em afirmar de que Dorrit escreve o melhor português do Brasil.

Quem conhece a Harazim tem a impressão, de que ela poderia fazer qualquer coisa que se proponha em qualquer parte do mundo. É uma pessoa doce e firme ao mesmo tempo, generosa e exigente. Não somente participou na fundação da revista jornalística mais famosa do Brasil, mas também, participou em outras empresas onde foi repórter, editora e chefe. Desta forma, é capaz de dirigir, e, além disso, o que às vezes é algo mais complexo, ela também é capaz de ser dirigida. Quando o seu talento não é o que alcança uma grande reportagem, ela então o alcança com a sua constância. Dorrit Harazim não é de soltar a sua presa quando encontra uma história, e é capaz de perseguir um mesmo assunto durante dez anos ou mais.

Na década dos anos 70, Dorrit trabalhou na Editora Abril em Nueva York, onde exerceu uma posição administrativa. Posteriormente passou para o Jornal do Brasil, onde dirigiu uma equipe de correspondentes e já era conhecida no país como a “grande editora internacional”. Assim é como Rosental Alves a lembra; ele a conheceu no ano 79 quando entrou trabalhar como correspondente em Madrid e também começou a fazer parte da equipe que era liderada por Dorrit. Durante essa década, recebeu 11 prêmios de jornalismo por trabalhos na cobertura de assuntos como a Guerra do Vietnã e a primeira “Guerra do petróleo” dos Emirados Árabes em 1972. Um trabalho inesquecível para Rosental, foi o trabalho que Dorrit realizou durante o golpe de Estado de 1973 no Chile. Esse 11 de setembro, Dorrit estava em Santiago e, desde um edifício de frente ao Palácio do governo, foi testemunha do bombardeio aéreo contra o Palácio da Moeda.

Após vinte e oito anos, Dorrit participou também da cobertura aos atentados terroristas de outro trágico 11 de setembro nos  Estados Unidos em 2001. Em todos esses grandes eventos, assim como nas quatro eleições presidenciais dos Estados Unidos que realizou a cobertura, Dorrit sempre busca e encontra ângulos, detalhes e aspectos que outros jornalistas deixam passar desapercebidos. Esta é, por certo, umas das lições em que Gabriel García Márquez insistia sempre durante seus workshops na FNPI.

Outra das grandes virtudes de Dorrit como jornalista é a sua grande versatilidade. Escreve com a mesma destreza sobre esportes olímpicos, sobre política internacional (este é o tema da sua atual coluna fixa em O Globo), ou sobre penitenciarias femininas (tema de uma de suas reportagens que foi uma das mais premiadas na revista Veja). Seus textos, armados com grande seriedade e coleta precisa de dados, estão impregnados de um humor sempre mordaz. Neste sentido, ela foi durante anos a pessoa encarregada de responder, sempre num tom risonho e irônico, as cartas enviadas para a redação na revista Piauí.

Recentemente, na sua coluna no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, enquanto toda a imprensa se concentrava no dia a dia dos protestos realizados na cidade de Ferguson, nos Estados Unidos, Dorrit buscava o contexto para explicar Ferguson com uma citação do discurso do presidente Obama na comemoração da marcha de Selma, 50 anos antes, e no qual se referia a Amélia Boyton, de 104 anos, quem estava ao lado de Obama: “Boyton é uma ativista cujo corpo inerte e martirizado é uma das fotos obrigatórias na iconografia daquela época. Os cavalos foram mais humanos do que as tropas”.

No próximo ano, quando a nossa premiada complete meio século de atividades jornalísticas, Dorrit Harazim vai celebrar também a sua décima Olimpíada. Desde os Jogos Olímpicos de 1980 na cidade de Moscou até Londres 2012, Dorrit trabalhou na cobertura de todas as Olimpíadas, sempre demostrando uma grande sensibilidade de repórter e de escritora para ir muito mais além da rotina da contabilidade de medalhas e do jornal esportivo tradicional. Dorrit possui uma rara capacidade para descrever em palavras os exatos movimentos de um atleta, como o fez no inicio de uma crônica sobre a brasileira Fabiana Murer, publicada no mês de junho de 2012 na revista Piauí: 

“Tente levantar uma vara com mais de quatro metros e meio de extensão, empunhando-a por apenas uma das extremidades. Depois mantenha a vara apontada para cima em linha reta em relação ao corpo, sem balançá-la. Nessa posição, comece uma corrida de 37 metros em dezoito passos, levantando o joelho a 90 graus do chão. Ao alternar cada passo, mantenha as suas costas, coxa e tíbia em ângulo reto, quase como a parte traseira, o assento e as pernas de uma cadeira. Tudo isso, a uma velocidade de mais de 8 metros por segundo e com a maldita vara sendo segurada em cima da cabeça. Durante a corrida, comece apontar para uma ancoragem de ferro localizada no final da pista. Enfie-a como se fosse uma lança, com precisão. Quem executa esses movimentos simplificados de forma quase obscena na descrição anterior, vai haver superado apenas a parte inicial da prova que talvez seja a mais complexa e bela do atletismo: o salto com garrocha.”

Essa capacidade narrativa de transportar o leitor até minuciosos, interessantes e geralmente ignorados detalhes de algo tão rápido como um salto olímpico, foi uma constante nos textos de Dorrit para a revista Piauí, onde ela trabalhou como editora e repórter até pouco tempo. Neste local, Dorrit deixou uma marca do seu estilo em uma aposta pelo jornalismo narrativo de longo suspiro que é reconhecido tanto no Brasil como na América Latina pela qualidade literária do seu trabalho.

Atualmente, Dorrit escreve uma coluna para o Jornal  O Globo do Rio de Janeiro e se dedica a outros projetos jornalísticos e documentários. Durante os últimos anos, Dorrit escreveu, por exemplo,  livretos de documentários, como  “A Família Braz” dirigido por ela e por Arthur Fontes; e “Passageiros” dirigido por ela e por Izabel Jaguaribe.

Com estas e muitas outras virtudes humanas e jornalísticas, Dorrit Harazim se destaca em todos os sentidos pela sua discrição e pela sua modéstia. Resiste-se a autopromoção e participa muito pouco de festas, homenagens, e atos de premiação. Dorrit é uma glória do jornalismo brasileiro, e seus colegas sabem disso muito bem, só que Dorrit é uma glória discreta, exatamente o tipo de jornalista que a FNPI aspira exaltar e propor como sendo um exemplo com o seu prêmio de excelência instituído à memória do fundador da FNPI, Gabriel García Márquez.

 

Nada mais a tratar nesta presente Ata que, após lida e aprovada, segue assinada pelos presentes.

Jaime Abello Banfi

Diretor Geral FNPI       

 

Jean-François Fogel

Presidente do Conselho Reitor Prêmio GGM

 

Teresita Goyeneche

Secretária Técnica Prêmio GGM

 

Dorrit Harazim, repórter
Por Carol Pires

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Dorrit Harazim esteve no Vietnã durante a guerra e na África do Sul durante apartheid. Testemunhou, em Santiago do Chile, o bombardeio do Palácio de la Moneda em 11 de setembro de 1973 e – exatos 28 anos depois – estava em Nova York quando as torres gêmeas foram atacadas.

Ser testemunha da história, porém, não é o mesmo que ser protagonista dela. Não para Dorrit Harazim. Em 47 anos como jornalista, fosse a reportagem sobre a periferia de São Paulo ou sobre as trincheiras do Camboja, nunca usou em seus textos o pronome pessoal “eu”. Daí porque, entre jovens jornalistas, não é raro encontrar quem fale o Dorrit ao invés de a Dorrit. Quem não saiba como é sua fisionomia. “Cansei de corrigir a pronúncia do nome dela. É Dôrrrrrrit. Não Dórit”, conta Cristina Tardáguila, repórter do jornal O Globo, que trabalhou com Harazim na revista Piauí por cinco anos.

Esse tipo de confusão com o nome de uma das jornalistas mais conceituadas do Brasil dá ideia de sua personalidade. “Não conheço melhor combinação entre estilo de vida e de escrita: a mesma elegância, a mesma discrição, o mesmo recato”, escreveu o escritor Zuenir Ventura em 2010, quando Dorrit Harazim foi a homenageada do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo.

Antes de tudo, o nome de Dorrit Harazim é estranho à sonoridade brasileira porque ela nasceu na extinta a Iugoslávia. Chegou no Brasil aos 5 anos com os pais, dois irmãos, e uma horda de imigrantes da Segunda Guerra. Mas ainda que tivesse um nome corriqueiro, Harazim tem como princípio que não importa a carpintaria da reportagem e sim a reportagem em si. E se não importa a carpintaria, não importa o carpinteiro: o comentário que Dorrit Harazim publica todo domingo no  jornal O Globo não leva o contumaz retrato do autor da coluna no alto da página; ela também não costuma aparecer na televisão; não é afeita a entrevistas; tampouco aderiu às redes sociais.  Como resume Cristina Tardáguila: “Dorrit é idolatrada no escuro”.

Dorrit Harazim virou repórter por acaso ao vivenciar outro momento historio: o maio de 1968.

Porque queria ser lingüista, Harazim deixou o Brasil para estudar na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. De lá, seguiu para Paris para continuar os estudos na Sorbonne. Envolvida no debate de esquerda daqueles tempos, namorava um militante procurado como terrorista em três países. Seu destino mudou aí. Levada certo dia à Sûreté Nationale, perdeu o emprego de secretária na Aliança Francesa após ter sido fichada. Conseguiu outro emprego para ser pesquisadora na L’Express, revista semanal que foi sucesso de vendas nos anos 1960. Editada por Jean-Jacques Servan-Schreiber, a publicação teve como colaboradores Albert Camus e Jean-Paul Sartre.

Foi na L’Express que Dorrit Harazim, então com 24 anos, conheceu dois ítalo-brasileiros, Roberto Civita e Mino Carta, de passagem por Paris para conhecer a engrenagem da semanal francesa. Planejavam lançar uma revista no Brasil e já haviam visitado a Der Spiegel, na Alemanha, e estavam a caminho dos Estados Unidos para conhecer Newsweek e a Time. Do encontro com os conterrâneos, saiu um convite para ela voltar ao Brasil e trabalhar na revista ainda sem nome. Ela ficou de pensar.

A “década da agitação estudantil” – como o historiador Eric Hobsbawm chamou os anos 60 – culminaria, meses depois do encontro de Harazim com os jornalistas brasileiros, com os sucessivos protestos estudantis e trabalhistas em maio de 1968. Com a agitação, veio a repressão. Fichada pelo serviço de contra-espionagem e sentindo-se cada vez mais acossada, ela decidiu que era hora de tentar a vida em outro lugar. Em outubro daquele mesmo ano, desembarcava em São Paulo para trabalhar pela primeira vez como repórter na nova publicação brasileira, que ganharia o nome Veja e se tornaria a revista semanal mais vendida do país.

 

“Ela alugou um quartinho e, todas as noites, quando entrava nele, pensava: passou mais um dia e eles não perceberam que eu não sou capaz de fazer o que eles querem. Nunca perceberam porque Dorrit aprendeu rápido”, conta o editor e fundador da revista Piauí Mario Sergio Conti no livro Notícias do Planalto.

Mino Carta, o chefe, a ensinava como ser jornalista e se comportar. Um de seus mandamentos era:  “Nunca use sandálias porque só uma mulher em 1 milhão tem os pés bonitos”. Já José Roberto Guzzo, editor de internacional da Veja,  a ajudava com o seu português enferrujado. “Antes do computador,  os chefes rabiscavam o seu texto. Depois da  terceira versão que vem rabiscado em vermelho, você pensa: essa palavra deve ser uma porcaria. Hoje, você mal tem tempo de reler o que foi editado no computador e a chance de um aprendizado cotidiano é curta. Na época esse ensinamento era mais gráfico”.

Na Veja, o processo de aprendizado foi ligeiro: fazia parte de uma publicação nova, com uma equipe jovem, que apostava na importância de vivenciar o que seria descrito, e ainda não estava dominada pelas hierarquias dos veículos consolidados. Em 1970 – Dorrit Harazim com 27 anos –já publicava relatos de guerra. “Não ter ficando numa redação tão hierarquizada como nos escaninhos europeus foi um privilégio. No Brasil foi tudo mais elástico”, diz.

Na primeira semana de junho de 1970, Veja anunciava o  relato de sua enviada especial às regiões de  Neak Luong, Kompong Cham e Tonle Bet, no Camboja, em plena guerra:

Uma vez em marcha, os cambojanos se compenetraram rapidamente de que uma rajada da artilharia inimiga poderia vir a qualquer momento. A demonstração mais palpável estava na descoberta dos esconderijos vietcongues, encontrados à medida que as colunas avançavam, e abandonados pouco antes pelo inimigo ainda com pistolas, rádios, lanternas ou travesseiros. A marcha prosseguiu por quatro aldeias da mata, subitamente desertas – só se encontrou uma jovem cambojana agonizando com dois tiros, um na cabeça e outro no peito. 

Transplantada para conflitos em países distantes e complexos, sendo tão jovem e com pouca ou nenhuma tecnologia para se comunicar com a redação no Brasil (em outra cobertura, pediu que a redação lhe enviasse mais dinheiro em Manama, capital do Bahrein, e o depósito foi feito em Manágua, Nicarágua), Harazim ia aprendendo com os erros. “Ao desembarcar, eu não sabia nada, nem a geografia do lugar”, relembra.

Ao lado de repórteres tarimbados, tentava não transparecer a falta de prática. “Ali, sua publicação não vale nada, sua nacionalidade não vale nada. Você cai de paraquedas no anonimato mais desértico. O que você faz em um ambiente onde todo mundo é jornalista veterano? A sua autodefesa é pretender que sabe muito. Eu sempre soube que eu não sabia nada, mas fingia que sabia como uma defesa, para não mostrar ignorância”.

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Quem colocou seus pés no chão – literalmente –  foi o repórter Henry Kamm, do New York Times. Kamm (ganhador do Pulitzer em 1978 pela cobertura da guerra do Vietnam) a puxou pelos tornozelos para dentro de uma vala numa incursão a Tonle Bet. Ele era da geração de correspondentes veteranos daquela guerra. “Olha só, não sei como nem por que você veio parar aqui. Suponho que seja para reportar sobre a guerra. Mas se quiser mandar matérias para seu jornal é melhor aprender a se jogar no chão como todos nós”, Harazim recorda ouvir do colega. “Naquela hora me dei conta do papel ridículo que eu estava fazendo e aprendi a não chegar tão crua”.

Com a experiência, passou a montar bancos de dados, fazer pré-investigações exaustivas, pensar em cada detalhe. Em 2006, antes de embarcar para Pequim, onde acompanharia os Jogos Olímpicos, insistiu para que a redação da revista Piauí, onde trabalhava como editora mandasse fazer cartões de visita com seu nome e contato escritos em mandarim.

A cada erro – e novo aprendizado – Harazim acumulava bagagem para circular entre novas culturas e contextos: de ir sozinha, em 1973, numa entrevista com o emir de Abu Dhabi no palácio de verão de Al-Bahr à meia-noite, a circular entre dez mil e quinhentos atletas nas Olimpíadas de Londres. Usava do saber em várias línguas e da vivência como imigrante para causar cada vez menos estranheza ao se inserir num ambiente estranho. “Ser diferente é um aprendizado valiosíssimo e isso te ajuda na profissão das maneiras mais insuspeitáveis. Você não vem com uma bagagem estabelecida.  Curiosamente, o seu interlocutor pode não racionalizar o que esta acontecendo, mas baixa a guarda”, diz.

Aos 30 anos, Harazim chegou à União Soviética em 1980 para cobrir uma área que se tornaria sua especialidade: a cobertura de esportes olímpicos. Moscou seria sede das Olimpíadas e Harazim viu na cobertura dos Jogos a possibilidade de escrever sobre a política de dentro do regime. “Moscou pensava, com a competição, obter como que um definitivo, eloquente aval a comunidade internacional ao regime instalado pela Revolução de 1917”, escreveu ela na abertura da reportagem de capa que publicou na revista Veja.

De Moscou, Dorrit herdou o gosto pela cobertura esportiva e também uma imigrante russa, que meses depois dos jogos apareceu na redação da Veja que deu asilo à repórter que havia conhecido em Moscou.

 

Renata Lesnik, uma vitrinista que se arriscou levando a jornalista para conhecer sua casa à noite, contra as ordens do regime, tentava chegar à França saindo de Moscou com escala em Cuba. Havia conseguido um visto de saída casando-se com um colega brasileiro. Ao não conseguir embarcar para Paris, foi para o Brasil, mas não pôde ser hospedada pelo marido de mentira (o rapaz era casado de verdade). Sem ter para onde ir, procurou Harazim na sede da Veja em São Paulo. Ela e o marido, o também jornalista Elio Gaspari, hospedaram Lesnik por um tempo, antes de comprarem a passagem que por fim a levou a Paris.

Depois de Moscou, Harazim fez a cobertura de outras oito Olimpíadas. “Ela descobriu como fazer a cobertura de esportes olímpicos num semanário”, escreve Mario Sergio Conti em Notícias do Planalto. Mas assim como descobriu um estilo próprio de fazer a cobertura de esportes, enfrentou os desafios e as armadilhas de fazê-lo para um semanário.

Nas Olimpíadas de Seul, em 1988, Dorrit Harazim conta ter visto “um dos momentos mais sublimes da máquina humana”, quando Ben Johnson, um canadense nascido na Jamaica, fulminou sua marca de 9s83 com o qual venceu o Mundial de Roma um ano antes correndo quatro milésimos mais rápido. “O que aconteceu na pista foi tão inimaginável! Era a capa óbvia de todas as semanais. A gráfica segurou a edição para esperar a coletiva de imprensa. Éramos 15 mil jornalistas credenciados”, lembra.

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No dia seguinte, seguiu para outra cidade para acompanhar a competição de Vela.  Já no barco da imprensa, ouviu um italiano atender o celular, artigo raro na época, e conversar aos berros com quem soava ser seu editor: Johnson havia sido pego no exame antidoping – o primeiro grande escândalo olímpico – e fora desclassificado. O estadunidense Carl Lewis era o novo campeão, tornando erradas as capas que haviam ido para as gráficas. “As revistas americanas puderam fazer uma segunda capa. A Veja, não. Hoje, na internet, você corrige o erro na hora. Num jornal, o erro dura um dia. Na revista, você tem que conviver com aquele erro uma semana”.

A bagagem que foi adquirindo a cada olimpíada foi sofisticando seu olhar sobre os esportes e os esportistas. Sua reportagem não se atém apenas às regras das competições e seus vencedores. Harazim analisa a política esportiva de cada país, a personalidade das equipes, a fragilidade emocional dos atletas, em geral muito jovens, que dedicam suas curtas vidas a quebrar recordes em milésimos de segundo. E trata tudo com extrema delicadeza: sabe que está lidando com jovens pouco expostos à mídia, que podem falar mais do que devem, e que devem ser salvos de si mesmos. “Uma pessoa despreparada te dá frases que são manchetes. No meu entender, exceto se for relevante para o que você está apurando, você não pode expor uma pessoa desnecessariamente só porque aquilo é o mais saboroso.”

Em Rotina de 15 mil braçadas, um perfil do velocista brasileiro Cesar Cielo feito durante a preparação dele para competir pela primeira vez em uma Olimpíada, Harazim mostra essa sensibilidade logo no começo do texto. No parágrafo de abertura, Cielo sonha que um australiano bate o recorde mundial na sua especialidade, os 50 metros nado livre, quando desperta com seu técnico abrindo a porta com um chute. Em Sydney, Eamon Sullivan, australiano de 22 anos, quebrara o recorde da prova com o tempo de 21 segundos e 56 centésimos. Ou seja, Cielo não sonhava, ouvira a notícia enquanto dormia.

Brett Hawke, o técnico, explica a Harazim por que despertara seu pupilo assim, de forma abruta e bruta, a poucas horas dele disputar os mesmos 50 metros livre no Grand Prix de Missouri: “Não queria que ele fosse surpreendido na piscina por alguém lhe assoprando a novidade pouco antes dele competir”. A frase de Hawke está aí, nas primeiras linhas do perfil porque é chave para entender como funciona a cabeça de um competidor que almeja quebrar recordes por milésimos de segundo:

Naquela mesma manhã, “Cesão”, apelido familiar do brasileiro, disputaria os mesmos 50 metros livre no Grand Prix de Missouri. Ao chegar ao parque aquático para o aquecimento, cruzou com o eterno bad boy da natação, o americano Gary Hall, dono da prova em seu país.

– Você ouviu que o recorde mundial caiu hoje? – lançou Cielo, sem qualquer inocência.

– Hoje? – resmungou Gary, com cara de sono.

– É, dos 50 livre. O Eamon. 21.5.

O americano abriu bem os olhos, botou a mão na cabeça e foi saindo. “Pronto, acabamos com o dia dele também”, comentou o brasileiro para o velocista francês Fred Bousquet, seu colega de Auburn. Resultado daquela manhã: Gary Hall em último lugar, Bousquet em terceiro e Cielo em primeiro, com um tempo de 22s01. De quebra, também saiu vencedor dos 100 metros.

O perfil de Cielo foi publicado na revista Piauí em junho de 2008. Em agosto, o brasileiro foi o campeão olímpico dos 50 metros livre nos Jogos Olímpicos de Pequim.

Para essa reportagem, Cesar Cielo deixou que Harazim o acompanhasse até que ela pudesse entender a cultura ao redor de uma piscina. O que para um leigo pode parecer uma ferramenta a mais ou um simples acessório (como a água da piscina, o body ou a touca do competidor), tornam-se quase personagens vivos. “Eu vesti o body dele. Claro que ele é enorme e ficou enorme em mim. Mas eu quis vestir para entender como é na pele. Como eu não uso a palavra eu, claro que você não vai ficar sabendo. Mas para o  leitor notar que eu sabia do que estava falando, eu os vesti”.

Em Notícias do Planalto, talvez o livro mais conhecido sobre os bastidores da imprensa no Brasil, Dorrit Harazim é descrita como “uma das chaves do sucesso da Veja”. Ela “inventou uma abordagem para os temas femininos, escapando dos dogmas do feminismo americano e das fórmulas das revistas nacionais que encaravam as mulheres como consumidoras de produtos e serviços. Com uma sensibilidade fina para as misérias da vida nacional – talvez decorrente da sua visão de estrangeira, desacostumada dos mecanismos de exploração do patriarcalismo -, apurou inúmeras reportagens que captaram o heroísmo cotidiano de brasileiros anônimos. De temperamento didático e disciplinador, ensinou dezenas de repórteres a não se satisfazerem com nada menos que o excelente, o melhor. Num meio predominantemente masculino, se impôs pelo profissionalismo. Um profissionalismo que a fazia temida (suas broncas ardiam) e admirada (suas reportagens e edições especiais eram modelos de solidez e rigor). Dorrit servia também de referência emocional na redação.  Acolhia em sua sala colegas em dificuldades familiares, psicológicas, profissionais e até monetárias”.

Flávio Pinheiro, hoje diretor do Instituto Moreira Salles, coleciona anedotas que mostram esse rigor – a insatisfação com o que não fosse excelente, o melhor. “A devoção de Dorrit à informação é maníaca”, diz.

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Em um desses causos, os dois  – Pinheiro como  chefe da sucursal da Veja no Rio de Janeiro e Harazim como editora da revista em São Paulo – fechavam uma reportagem de capa com o ator Paulo Autran, o patrono do teatro brasileiro. O fechamento, como de costume, seguia madrugada adentro, quando o ramal de Flávio Pinheiro tocou. Era Dorrit.  “Ou a foto está errada ou Paulo Autran tem olhos de cores diferentes”. Apesar de o relógio marcar duas horas da manhã, Pinheiro se vê obrigado a telefonar para a casa do ator. Não de um ator, mas do maior ator do país. O jornalista se lembra de um Paulo Austran que acordou sem fúria, mas arrastando um enfado constrangedor. “Meus olhos tem cores diferentes” – é tudo que diz e desliga.  Pinheiro estava constrangido, mas a capa estava salva.

Anedotas assim pipocam entre os que já foram da equipe de Harazim, seja na Veja, no Jornal do Brasil o na Piauí. Corre a história de que um tarimbado repórter que trabalhava para ela na editorial de Internacional colocava a mão no escapamento do carro dela para saber se ela tinha chegado muito antes que ele. Ela não nega a fama: “Eu era tenebrosa como chefe, terrível”. Com o tempo, adoçou. “Eu mudei no tratamento. Mudei comigo, porque o rigor também valia para mim. E mudei na forma de me comunicar com os outros. Mas não o rigor. Não é necessário, nem obrigatório, nem útil o rigor ser verbalizado de maneira categórica. É possível conseguir o mesmo resultado mantendo o rigor e sendo mais palatável com o interlocutor”.

Depois desta primeira fase na Veja, Harazim trabalhou no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e voltou para a revista em 1975. “Fui uma jornalista de jornal que escreveu melhor tendo trabalhado em revista e vice-versa. Quando voltei para Veja, eu tinha adquirido uma agilidade, tinha descartado vícios de linguagem típicos de revista, que me ajudaram a ser uma repórter de revista melhor”.

Em 1988, de volta à Veja, mudou-se com o marido, Elio Gaspari, e a filha deles, Clara, para os Estados Unidos. Passaram cinco anos em Nova York – Harazim como chefe do escritório da editora Abril (que abriga as principias revistas do país, da noticiosa Veja à masculina Playboy), e Gaspari como correspondente da Veja.

A experiência nos Estados Unidos mudou a maneira como ela via a reportagem.  Em Mulher, Crime e Castigo, uma reportagem que publicou na capa da revista em 1995, Harazim convenceu o então novo secretário de segurança do Rio de Janeiro que a deixasse passar uma semana no presídio Talavera Bruce, em Bangu. Queria falar sobre o sistema prisional sem que fosse preciso ser pautada por uma rebelião ou pela prisão de um bandido conhecido. Queria falar, especialmente, de um lado do sistema prisional ainda menos explorado, o feminino.

“As pessoas acham que para fazer uma reportagem tem que acontecer algo. Não tem. Você tem que narrar, narrar o que vê, saber escutar. Apenas esse universo, acho que é uma matéria tão indispensável para a compreensão da sociedade como um roubo de 5 milhões de dólares. É isso que eu gosto da profissão de jornalista. Isso me dá um encanto tão grande quanto entrevistar o Papa”.

Antes de sair de São Paulo, onde vivia, para o Rio, onde fica o Talavera Bruce, Dorrit não sabia como ir vestida e optou por jeans e camiseta. “Foi uma mancada. Não sei como eu fiz isso”, lembra. Jeans era a roupa típica dos funcionários da carceragem. Ao checar no presídio, “onde os boatos se espalham em segundos”, foi tida como uma espiã da polícia. Por sorte, havia visitado o mesmo presídio anos antes com o conhecido ativista dos direitos humanos Herbert José de Sousa, o Betinho, e foi reconhecida por uma prisioneira. Outra vez, em segundos, outro boato correu o presídio: Dorrit era confiável.

Ela tornou-se, ao longo daquela semana, psicóloga, confidente e até garota de recado das presas. Saiu do prédio com recadinhos para levar para os namorados delas. Mais uma vez, conseguiu se inserir num meio hostil. “Eu fui parar, jovem, mulher, branca, solteira, no mundo árabe nos anos 70. Como imigrante e no exercício da profissão, você aprende com a diversidade, o multiculturalismo. Talvez por isso eu sempre consegui me inserir, seja na prisão, seja no mundo árabe”.

Durante oito dias, dormiu na prisão comendo o que as presas comiam, dormindo cada noite em uma cela diferente. Aos poucos foi sendo procurada pelas presas, ávidas por falar, falar, falar. Conheceu, assim, histórias como a de Djanira Metralha, condenada a 200 anos de prisão, e Marta Pistola, “a musa do amor bandido”. Dorrit ganhou, por essa reportagem, um Esso, o principal prêmio de jornalismo brasileiro. “Eu tenho muito encanto por isso porque eu acho um privilegio ser jornalista por isso. Ele te coloca em situações em que você jamais se veria se você não fosse jornalista”.

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Em uma profissão cuja carreira em geral começa na cobertura de temas de cidade e cultura e culmina na cobertura de temas de política e economia nacional e, quiçá, uma correspondência de guerra, Harazim fez o caminho aposto. “Para mim foi exatamente o contrário. Mas acho que tive o bom senso de perceber a tempo o privilégio que eu estava tendo de fazer o que normalmente é considerado o máximo – reuniões de cúpulas, eleições americanas, viagens, guerras, revoluções. Uma hora você é tudo o que os romances  fantasiam como a repórter estrela. Em determinado momento eu percebi que o que deveria ser o ápice  da carreira me deu a sabedoria, a qualificação profissional, para querer cobrir a mulher que vende produtos da Avon no interior do Pará”.

Em 1999, Dorrit Harazim começou a fazer incursões pelo cinema documental. “A primeira vez que eu vi a Dorrit foi em 98. Ela veio até a Videofilmes pra fazer uma matéria para a Veja sobre o documentário Futebol, do João [Moreira Salles, dono da produtora], que estava sendo lançado.  Me lembro dela bem-vestida, sempre elegante e cheirosa. Me pareceu uma professora de alemão, das boas, séria, compenetrada  e competente, que fala pausadamente e não joga uma palavra fora. A fala dela já vem editada, afiada e certeira”, recorda Raquel Zangrandi, que trabalhou como produtora nos documentários de Harazim.

Contratada pela Videofilmes para participar de um projeto que unia diretores e jornalistas num especial que inicialmente seria sobre os 500 anos do Brasil, ela e a diretora Izabel Jaguaribe acompanham um migrante nordestino que trabalhava em um restaurante de São Paulo voltando pra casa pra visitar a família no Piauí durante uma viagem que durou três dias de ônibus. O filme chama-se Passageiros e faz parte de uma série de seis documentários sobre temas brasileiros. Um dos seus trabalhos mais bonitos é a série de documentários Travessias, produzido pela VideoFilmes, e exibido no canal GNT. Em Travessia do Silêncio, um casal jovem e promissor espera seu primeiro filho, que nasce surdo. Travessia da Dor conta a saga de dois nadadores de alto rendimento tentando uma vaga nas Olimpíadas de Atenas. Em Travessia do Ar, atletas de Ginástica olímpica tem sua árdua rotina exposta. Os outros três documentários da série são Travessia da Vida (sobre o trabalho de Zilda Arns na Pastoral da Criança), Travessia do Tempo (a última semana de um detento cumprindo pena de 37 anos e a primeira semana em liberdade), e Travessia do Escuro (sobre um grupo de adultos analfabetos aprendendo a ler).

“Os documentários são o reflexo pelo meu interesse pelo brasileiro que não é mostrado”, diz Harazim. Em Família Braz, Dorrit Harazim e Arthur Fontes radiografam uma típica família brasileira de classe média, com quatro filhos, na periferia de São Paulo. Dez anos depois, atravessando a pujança do governo Lula, os dois diretores voltam a encontrar a família para mostrar como a vida deles havia mudado. Em uma das cenas, os seis membros da família aparecem na frente de casa ao lado de um carro usado, o único da casa. Na cena de dez anos depois, em frente ao mesmo portão, os mesmos seis aparecem felizes ao lado de quatro carros. Dois Tempos ganhou o prêmio É Tudo Verdade de 2011.

Do trabalho com a VideoFilmes, do documentarista João Moreira Salles, nasceria outro projeto, o de fundar uma revista. Nascia assim a Piauí. “A Dorrit sempre esteve no DNA da revista, e pra mim, ela ainda está. Tudo que eu faço sempre penso: O que ela faria?, e me correspondo com ela quase que diariamente”, diz Zangrandi, ainda hoje secretária de redação da Piauí.

A Piauí é uma revista mensal cuja roupagem foi costurada com o que Harazim mais prezou ao longo da profissão – o tempo para pensar o tema, o zelo com a apuração, a precisão do texto, o rigor da checagem e o apuro gráfico. “Também fomos atrás do que estava sendo feito na América Latina e descobrimos que estávamos chegando tarde. Revistas como a Etiqueta Negra já estavam aí, então a Piauí tinha mais é que existir logo”.

Na Piauí, Harazim escreveu sobre a vida dos ex-presidentes da República e sobre o Torneio Americano de Palavras Cruzadas; publicou um perfil de um deputado lutando contra as milícias do Rio de Janeiro e a análise de um discurso do presidente boliviano Evo Morales Morales em cruzada contra o frango industrial, a batata holandesa e a Coca-Cola, “agentes e sintomas de uma civilização à deriva”.

Da batalha judicial entre Brasil e Estados Unidos pela guarda de uma criança à história da última fábrica de máquinas de escrever, os textos de Harazim para a Piauí prezam pelo mesmo rigor. Para escrever sobre a decisão da prefeitura do Rio de trocar as lixeiras públicas da cidades, por exemplo, pediu ajuda aos repórteres para conseguir até o projeto gráfico delas. “Depois calculou diversas hipóteses de quais produtos caberiam ou não nas  novas lixeiras”, recorda Tardaguila. Trecho do texto diz:

O munícipe que desafiar as leis da física e tentar enfiar um coco verde goela abaixo da simpática lixeira vai se dar mal. Ele pode socá-lo quanto quiser, mas não conseguirá fazer passar o fruto pela boca do receptáculo, que mede 11 centímetros. Impedimento ainda maior terá o cidadão que pretender se livrar da garrafa pet de 2 litros que matou sua sede de verão – ela não entrará nem pela largura nem pela circunferência. Garrafas de 1 litro também não são facilmente aceitas pelas papeleiras.

“O juízo de Dorrit parece testar todas as hipóteses na busca da veracidade”, analisa Flávio Pinheiro. Cristina Tardáguila concorda e sabe disso na pele. Outra hipótese que Harazim quis testar para essa reportarem foi: se a lixeira seria menor, quantas vezes mais o caminhão teria que passar recolhendo o lixo? Para tal, pediu que Tardáguila fosse à Avenida Rio Branco, a principal do Rio de Janeiro, para contar quantas lixeiras haviam dos dois lados da pista – informação que no final não usou no texto.

“Ela não deve usar nem 10% do que apura”, diz Tardáguila. Certa vez, orientada por Harazim, a jornalista cobriu a competição de boliche nos Jogos Panamericanos do Rio. Quando voltou, não sabia tirar as dúvidas da editora sobre as regras do jogo. “Ela me disse: mas você esteve do lado dos melhores caras da América e não perguntou? Respondi que achei que não ia precisar e ela me deu uma lição: mas você pode precisar então melhor perguntar tudo”.

Ainda hoje, Tardáguila, como muitos repórteres que trabalharam com Harazim, a consulta como a uma guru. “Ela diz que jornalista tem síndrome de medalhista olímpico, que é passar muito tempo dedicado a um assunto, mas ter que recomeçar no dia seguinte. Jornalista tem dificuldade de entender que não basta fazer uma reportagem muito boa uma vez. Quando acaba, tem que começar tudo de novo. Sua humildade tem que ir lá embaixo e galgar de novo. Ela me ensinou que fazer jornalismo é recomeçar todos os dias”.

Na sua passagem pela Piauí, uma reportagem que comunga todas as qualidades do trabalho de Harazim é Sobras de Guerra. A experiência de ter estado em conflitos armados lhe deu credencial para entrar num hospital para feridos de guerra. A capacidade de criar empatia, conseguiu acesso à intimidade de americano, mesmo sendo uma mulher, mais velha, estrangeira, de uma revista brasileira ainda desconhecida como era a Piauí.

Entrar no apartamento do fuzileiro naval americano Travis Greene, em San Diego, incomoda. O visitante se sente invadindo o refúgio sombrio de alguém que se esconde da vida. Em plena manhã de sol californiana, numa cidade tão escancarada quanto o Rio, todas as persianas da sala estão fechadas, vedando a entrada de qualquer fresta de luz vinda do mundo lá fora. O morador do 303 prefere a iluminação indireta.

 

Ele abre a porta, enfiado numa camiseta de manga curta que lhe acentua o tórax. Ex-campeão universitário dos 100 metros e 400 metros com barreiras pelo Estado de Idaho, Travis Greene veste uma bermuda bege que lhe encobre a pélvis. As duas pernas com as quais conquistou os troféus de atleta ficaram no Iraque, a quase 13 mil quilômetros de distância – entre as ferragens de um blindado numa estrada de Ramadi.

“Consegui a confiança de um sujeito mutilado, um sujeito cheio de feridas físicas e emocionais. Você pode pensar, puxa, mas perto de descobrir um rombo de 50 milhões nos cofres do Brasil, isso não é nada. Quer saber? Eu acho isso maravilhoso. Isso mostra que eu aprendi muito na profissão e eu honrei essa profissão. Porque eu sei que eu não fiz nada de errado nessa matéria”, diz.

Outro acerto da reportagem é que ela não cai em lugares comuns, clichês e sentimentalismos. “Poderia ter feito descrições indevidas, descrito cenas que eu vi e que não precisam ser descritas”. Ela diz: “A ética jornalismo é a mesma ética para você e para um florista. A ética é substancial”.

Harazim é, hoje, colaboradora frequente de ensaios e fotografia Zum e publica uma coluna semanal no jornal O Globo. Ela escreve aos domingos com uma fórmula própria: deixa os assuntos que lhe interessam em banho-maria antes de escrever sobre eles. Assim, “fatos da semana que sobrevivem ao massacre da disseminação e chegam fresquinhos de ineditismo aos domingos”, como coloca Flávio Pinheiro. O mais prodigioso de seus artigos, diz Pinheiro, é a vivacidade de estilo com que apresenta informações que não entraram no radar de outros jornalistas. “Nos artigos dela, o que às vezes parece acessório não é ornamento, mas essencial”.

O segredo dos textos de Dorrit Harazim é que eles mostram, nos detalhes, a explicação para o todo. Sua carreira seguiu o mesmo curso: começou pelas estrondosas guerras e altas cúpulas para depois se encontrar na periferia dos assuntos, em personagens incógnitos, como se a explicação para o mundo não estivesse nos grandes acontecimentos, mas nos seus mínimos detalhes. “O que eu acho curioso no meu caso como jornalista foi ter começado num patamar delirante, de ser uma caloura circulando entre jornalistas dos principais jornais do mundo, e depois decidir ir para o miúdo. E, nesse sentido, eu tenho alegria de dizer que, depois, que eu me meti nisso, fui feliz para sempre”.